A Desencarnação de Allan Kardec
Autor: E. Muller
No dia em que Allan Kardec desencarnava, constituindo este fato dolorosa surpresa para todos os amigos e para os espíritas em geral, nesse mesmo dia o Sr. E. Muller, grande amigo do Codificador e de sua digna esposa assim se expressava por carta ao Sr. Finet:
Amigo:
“ Agora, que já estou um pouco mais calmo, eu vos escrevo. Enviando-vos meu aviso, como o fiz, talvez tenha agido um tanto brutalmente, mas me parecia que devíeis receber a comunicação imediata desse falecimento.
Eis alguns pormenores:
Ele morreu essa manhã, entre onze e doze horas, subitamente, ao entregar um número da Revue a um caixeiro de livraria que acabava de comprá-lo; ele se curvou sobre si mesmo, sem proferir uma única palavra: estava morto.
Sozinho em sua casa(Rua de Sant’ana), Kardec punha em ordem seus livros e papéis para a mudança que vinha processando e que deveria terminar amanhã. Seu empregado, aos gritos da criada e do caixeiro, acorreu ao local, ergueu-o... nada, nada mais. Delanne acudiu com toda a presteza, friccionou-o, magnetizou-o, mas em vão. Tudo estava acabado.
Venho de vê-lo. Penetrando a casa, com móveis e utensílios diversos atravancando a entrada, pude ver pela porta aberta da grande sala de sessões, a desordem que acompanha os preparativos para uma mudança de domicílio; introduzido numa pequena sala de visitas, que conheceis bem, com seu tapete encarnado e seus móveis antigos, encontrei a Sra. Allan Kardec assentada no canapé, de face para a lareira; ao seu lado, o Sr. Delanne; diante deles sobre dois colchões colocados no chão, junto à porta da pequena sala de jantar, jazia o corpo, restos inanimado daquele que todos amamos. Sua cabeça, envolta em parte por um lenço branco atado sob o queixo, deixava ver toda a face, que parecia repousar docemente e experimentar a suave e serena satisfação do dever cumprido.
Nada de tétrico marcara a passagem de sua morte; se não fosse a parada da respiração, dir-se-ia que ele estava dormindo.
Cobria-lhe o corpo uma coberta de lã branca, que, junto aos ombros dele, deixava perceber a gola do robe de chambre, a roupa que ele vestia quando fora fulminado; a seus pés, como que abandonadas, suas chinelas e meias pareciam possuir ainda o calor do corpo dele.
Tudo isto era triste, e, entretanto, um sentimento de doce quietude penetrava-nos a alma; tudo na casa era desordem, caos, morte, mas tudo aí parecia calmo, risonho e doce, e, diante daqueles restos , forçosamente meditamos no futuro..
Eu vos disse que na sexta-feira é que o enterraríamos, mas ainda não sabemos a que horas; esta noite seu corpo esta sendo velado por Desliens e Tailleur; amanhã será por Delanne e Morin.
Procuram-se entre os seus papéis, suas últimas vontades, se é que ele as escreveu; de qualquer forma, o enterro será puramente civil.
Escrever-vos-ei, dando-vos os pormenores da cerimônia.
Amanhã, creio eu, cuidaremos em nomear uma comissão de espíritas mais ligados à causa, aqueles que melhor conhecem as necessidades dela, a fim de aguardar e de saber o que se irá fazer.
De todo o coração, vosso amigo,
(a) Muller.”
A segunda carta de Muller é igualmente preciosa. É assim vazada:
Paris, 4 de abril de 1869
Amigos.
Uma grande folha de papel! Enchê-la-ei eu esta noite?
Curvado, abatido, começo apenas a despertar de uma emoção muito natural.
Parece-me ter estado a sonhar, entretanto tal não ocorreu e não posso ter o consolo de uma ilusão. Tudo é realidade, verdade brutal, sancionada por um fato. Mas sou feito de molde a que meu pensamento não pode se acostumar à idéia de que ele já não existe1 Que já não existe! Compreendei bem o que minha pena deseja dizer? Pois o que penso, o meu coração desmente o que ela exprime. Entretanto é bem verdade! Sexta-feira nos dirigimos ao campo de repouso, conduzindo seus despojos mortais; e o lúgubre ruído da terra, cobrindo seu caixão, repercutiu em ecos em meu coração. Que vos direi?... que sofri, e que não chorei?
Minha intenção – a triste cerimônia fúnebre realizada! – era a de vos escrever logo em seguida, porém o meu pensamento paralisado e o meu organismo abatido não permitiram que meu coração tivesse esse doce consolo; eu não pude faze-lo!
Eis, entretanto, na medida em que minhas lembranças podem ser exatas, as circunstâncias da cerimônia:
Precisamente ao meio-dia o cortejo se pôs a caminho, um carro mortuário modesto, um único, abria-o, arrastando após si, docemente comprimida , a multidão numerosa composta por todos aqueles que puderam se encontrar nessa última reunião. O acompanhamento fúnebre foi conduzido pelo Sr. Levent, vice-presidente da Sociedade Espírita de Paris; em seguida a multidão de amigos, simpatizantes, os interessados de toda espécie; os empregados e pessoas desocupadas fechavam o cortejo, ao todo mil ou mil e duzentas pessoas.
O carro fúnebre seguiu pela Rua de Grammont, atravessou os grandes “boulevards”, a Rua Laffite, Notre-Dame-des-Lorrettes, a Rua Fontaine, as avenidas exteriores de Clichy e penetrou no Cemitério de Montmartre, em meio a multidão que o seguia. Bem longe, lá no fundo, mais longe ainda, nos limites do cemitério, uma vala escancarada aguardava o seu ocupante, e os curiosos romperam as filas para ouvir os discursos (pobres criaturas!). As cordas do coveiro envolveram o caixão que desceu lentamente ao fundo do abismo. Um grande silêncio se fez. O vice-presidente da Sociedade se aproximou da vala e sua voz emocionada, compenetrada, convicta, em nome da entidade, solicitou ao morto o prosseguimento de seus conselhos e lhe disse, não um adeus mas uma até breve. Camille Flammarion, sobre um pequeno cômoro, ali existente por acaso, tomou da palavra em nome da ciência unida ao Espiritismo e, da enérgica maneira afirmou aos olhos de todos, a fé que o anima. Em seguida foi a vez de Delanne, que falando em nome dos irmãos da província, prometeu ao Espírito de Allan Kardec que todos seguiríamos a rota por ele tão laboriosamente traçada. Um quarto e último discurso foi pronunciado por nosso colega Sr. Barrot. Cada orador, dirigindo-se ao Espírito Allan Kardec, lhe dizia: “Velai por nós, velai por vossas obras, vós que possuís a liberdade”.
Nada nas palavras desses oradores lembrava essas tristes orações fúnebres que fazem o coração desesperar por suas palavras: “Adeus, eu não te reverei mais, nunca mais!”. Longe de nós esse triste pensamento; o Espiritismo oferece-nos uma consolação maior e todos os discursos pronunciado sobre a tumba do Mestre terminaram por animadoras palavras: Até logo, querido amigo de nossos corações, até nos revermos em um mundo melhor! E possamos nós, como tu cumprimos com nossa missão na Terra!
Em seguida a multidão se dispersou, retornando aos seus afazeres ou às suas reflexões. A Sociedade deveria se reunir à Rua Sant’Anne, para solicitar uma evocação: assim sendo, os membros individualmente para lá voltavam com apressuramento.
Seis comunicações foram ali obtidas.
Muito vosso
Muller
Aí estão, fiéis quanto possível, as traduções dos documentos copiados em Lyon por Sausse e cujos originais, como quase tudo talvez, se perdeu. Verifica-se que Allan Kardec não foi sepultado no Père-Lachaise, mas sim , no velho cemitério de Montmartre e, em seguida, transladado para o dolmen mais tarde construído e onde foi também sepultada a Sra. Allan Kardec.
È bom relacionar que o Sr. Delanne, várias vezes mencionado, não é o celebre escritor espírita, Gabriel, na época pouco mais do que uma criança, mas seu pai o Sr. Alexandre Delanne, fiel amigo do Professor Rivail.
Quanto ao mais, além do discurso de Camille Flammarion, tudo se perdeu na voragem do tempo. Nem mesmo o previdente Muller pudemos obter qualquer notícia. Ele assinava-se M. E. Muller e foi, como dissemos, o encarregado pela família do ilustre desencarnado, de dirigir-lhe as últimas palavras de despedida. Além disso há o retrato de Henri Sausse, o primeiro biógrafo de Kardec, existente milagrosamente nos arquivos de Cairbar Schutel. Tudo o mais é a própria obras imperecível de Kardec.
Fonte: Reformador e Revista Internacional de Espiritismo (extraído do site: http://www.oespiritismo.com.br/textos/ver.php?id1=105)
Poste um comentário